20 de abril de 2020

Diário da Minha Jornada no Caminho de Compostela



OITAVO AO NONO DIA
Palas del Rey - Ribadiso de Baixo



No meio do trajeto entre  Palas del Rey  e  Ribadiso de Baixo me desliguei do grupo e cheguei nesse lugarejo sozinha. As  reservas  sempre  eram feitas previamente, no dia anterior, em nome de  alguém do grupo. Ao chegar  no albergue o recepcionista me informou que não havia nenhuma reserva em nome de alguém do nosso grupo. Então pedi que me indicasse alguma casa rural nas proximidades. Havia uma perto dali a Casa Rural da Bia e chegando lá a dona da pensão falou que não havia mais vagas para aquele dia. Retornei ao albergue, quando chegou uma peregrina brasileira de Curitiba que fez amizade com nosso grupo. Então ela me informou que havia feito a reserva de todos do grupo em seu nome,  a pedido de alguém. Fiquei tranquila, apesar de já ter feito uma reserva em um hotel perto dali, mas fora do caminho. Portanto preferi ficar no albergue junto com todos do grupo e desisti da reserva no hotel. Eu e a amiga de Curitiba nos acomodamos no albergue esperando  o restante  do grupo,  e aproximadamente meia  hora depois,  os demais  companheiros  chegaram. 




Em Ribadiso não havia muito o que fazer, é um povoado bem pequeno. Tudo se concentrava no albergue e fizemos nossas refeições ali mesmo. O menu peregrino, encontrado em restaurantes ao longo do caminho, é muito farto e substancial: uma sopa de entrada ou caldo galego, feito com legumes e verduras; o prato principal com carne bovina, ou suína, ou frango ou pescado, acompanhado de uma salada verde, ou batatas ou massa; e uma sobremesa. Também sempre presentes no menu peregrino os itens tradicionais, pão e vinho.
Depois do almoço fiquei a maior parte do tempo no quarto, repousando para estar bem e caminhar no dia seguinte. Assim ocorreu e ainda cedo partimos com destino a Pedrouzo. O tempo continuava chuvoso, a Galícia é muito úmida, ali chove quase o ano inteiro.
Em certo trecho deste percurso passamos em um povoado rural, com poucas casas de pedras, bem típicas da Galícia, onde encontramos alguns cães de guarda, bem grandes, que latiram de forma ameaçadora quando nos avistaram. Lembrei que devemos erguer o cajado do chão, quando há cães de guarda por perto, pois eles ouvem o barulho dos sticks no solo como uma ameaça, uma vez que têm a audição bem mais apurada que a humana. Assim fizemos, seguindo com os cajados erguidos na posição horizontal. Eu enviava mensagem telepática para os cães: “somos amigos, nos deixem passar”. Então os cães pararam de latir e passamos em frente, caminhando em paz.
Nos trechos íngremes de subidas, quando ficava muito cansada, outra música que me vinha sempre à mente era a Marselheise, o hino da França. Passei minha infância ouvindo minha mãe cantar este hino. Ela foi professora de francês na escola de ensino ginasial, na pequena cidade de Palmeirais, onde eu morei até os nove anos de idade.
Nas aulas de francês minha mãe ensinava a Marselheise aos seus alunos e cantava com eles. Nessa época eu tinha aproximadamente sete anos de idade, a escola ficava bem perto da nossa casa. Eu gostava de ver minha mãe ensinando francês e, às vezes, ficava apoiada no parapeito da janela da sala de aula, do lado de fora, quando ela cantava o hino da França junto com os alunos.
No caminho eu lembrava dos versos da Marselheise, a parte que fala dos cidadãos marchando e formando batalhões, para se saciarem do sangue impuro dos inimigos.
Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons! Marchons, marchons, qu'un sang impur abreuve nos sillons! “
Eu associava esses versos do hino da França, com as aulas de ciências, onde aprendi que os leucócitos eram os soldados do organismo na batalha contra as infecções. Meu maior inimigo no caminho era a virose que contraí no trajeto de Villafranca. Então eu cantava a Marselheise e imaginava os soldados do organismo, os leucócitos, vencendo o inimigo, os vírus que minavam minha energia para caminhar. Os soldados ficavam saciados do sangue impuro, contaminado do vírus da gripe. Imaginava o batalhão de soldados leucócitos marchando e vencendo os vírus inimigos. E no final da batalha eu conseguiria o sangue original, puro e sagrado, livre de toda contaminação.
Eu imaginava que poderia estar com o mesmo vírus da gripe espanhola, que contagiou boa parte da população da Espanha no século XVIII. Muita gente morreu nessa época, devido ao surto dessa gripe. Pensava nos inúmeros peregrinos que haviam morrido na rota de Compostela, por contraírem alguma doença durante a caminhada. Eu não iria fazer parte dessa estatística fúnebre, pois conseguiria vencer a virose e chegar a Santiago de Compostela”, dizia para mim mesma .
Em um determinado trecho avistei um antigo túmulo coletivo. A lápide era enorme e nela havia o nome de todos os falecidos. Conjecturei que muitos deles teriam morrido fazendo o caminho. Imediatamente procurei descartar o medo e qualquer pensamento negativo, encontrando a coragem necessária para seguir adiante e conseguir a vitória no final da jornada. Nesse momento eu repetia para mim mesma a frase que ouvira antes: “A dor é transitória, a glória é para sempre“. A vontade de caminhar era maior que o medo e novamente eu lembrava de rezar o salmo 23 :
O Senhor é meu Pastor, nada me falta; em verdes paisagens me faz repousar, para fontes de águas tranquilas me conduz; e restaura minhas forças ; Ele me guia por bons caminhos, por amor ao seu nome, conforme prometeu ; meu caminho é de luz e nada temerei, pois junto a mim Ele está ; seu bastão e seu cajado me dão segurança ” ...
Eu rezava e me apoiava no stick, meu bastão de metal, azul e prata. E continuava a caminhada , subindo as ladeiras íngremes, cheias de pedregulhos. E ficava extasiada com tanta beleza; ouvia o gorjeio dos passarinhos; o barulhos das fontes; o soar da leve brisa nas folhas das árvores; as flores da primavera de todas as cores e tipos; os peregrinos do mundo inteiro que passavam por mim desejando buen camino .



Os leucócitos, soldados do meu organismo, continuavam saciando-se do sangue impuro. Então eu cantava o hino da França e sentia meu organismo reagir à virose. Sim, eu conseguiria vencer o inimigo! Eu conseguiria ter a força necessária! E continuava a cantar, agora não mais o hino da França, mas a música do grupo infantil “Balão Mágico”, que dizia:
Eu tenho a força, sou invencível, juntos amigos, unidos venceremos a semente do mal “.
Chegamos em Pedrouzo ainda cedo, por volta das onze horas e ficamos esperando a abertura do hostal, com outros peregrinos que também chegaram antes. Já me sentia bem melhor, estava bem disposta, a caminhada daquele dia não foi muito cansativa.



Depois de nos acomodarmos no hostal fomos almoçar na companhia de duas peregrinas sulistas que se juntaram ao grupo. Em seguida fomos ao mercadinho fazer as compras para uma confraternização no jantar, pois no dia seguinte nossa jornada terminaria, já estávamos a poucos quilômetros da cidade de Santiago de Compostela.








4 comentários:

  1. Oi, Tânia!
    Estou aqui lendo as postagens e vendo suas fotos. Um caminho que algum dia irei fazer! Já ouvi muitos relatos e a cada experiência a minha vontade aumenta cada vez mais!! Espero em breve realizar esse sonho!!
    Beijinhos no coração!!

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    1. Oi Luma, tudo bem? É uma experiência indescritível, só vivenciando mesmo... Tomara que vc realize esse sonho em breve!
      Bejokas

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  2. Relato maravilhoso, bem traduzindo o quanto especial foi essa viagem, com experiências enriquecedoras e grande prazer de viver.Parabéns!!!

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  3. Obrigada pela comentário, Ana Lúcia!
    Bjkas

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