Lições do Caminho

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Coluna "Os Encantos do Caminho de Santiago"
Colunista  *Eduardo Assumpção Queiroz
 

Lições do Caminho

Oficialmente, a Catedral de Santiago não é o objetivo final da peregrinação, mas sim o oceano, onde os peregrinos simbolicamente jogam ao mar os pertences da vida antiga e partem para uma nova etapa, renascidos e tendo limpado a alma ao longo das jornadas da rota.

Lembro-me perfeitamente, 27 de junho de 2008, na cidade de Cee, última parada antes de chegar a Finisterra, na costa da Galícia. Tinha chegado em Santiago dois dias antes e estava completando minha peregrinação fazendo a extensão de aproximadamente cem quilômetros que nos leva ao “Fim da Terra”, como era chamado este ponto da Europa antes do descobrimento da América.

Entrei num cybercafé para enviar um email em que refletia o que tinha sentido ao chegar em Santiago. Certamente, muitos esperavam que dissesse o quão emocionante foi, que falasse de alguma revelação mágica, ou de um esclarecimento de nossas constantes buscas internas.

Assim como para muitos outros peregrinos com quem já conversei sobre este tema, curiosamente, chegar em Santiago foi extremamente corriqueiro. Viver cada dia do caminho foi o que me trouxe muitas emoções. Igualmente, na vida, mais importante que onde queremos chegar e o que queremos atingir é o processo que nos leva a isto, cada dia, cada etapa, cada conquista. Como diz o ditado, “O importante é a jornada e não o destino”.

Paralelamente às emoções que vivi diariamente, assimilei algumas lições, as quais gostaria de compartilhar aqui.

1. Estar sempre focado no presente, e aos sinais.
No caminho, as setas amarelas nos guiam. Não há como se perder, a não ser que percamos a atenção. O resultado pode ser caminhar totalmente fora do nosso rumo, que é extremamente frustrante.

No primeiro dia da primeira vez que fui ao caminho me perdi completamente saindo de Pamplona. Andei por quase duas horas sem encontrar a rota. Aprendi imediatamente a importância de manter-se atento às flechas amarelas que indicam o caminho. O mesmo pode ser dito com relação às nossas rotinas diárias e objetivos de vida.

Um simples exemplo de outra consequência da distração durante uma caminhada é não estar atento ao terreno irregular, que pode facilmente levar a uma torção de tornozelo e que possivelmente poderia levar ao abandono da viagem.

Por último, estar focado no aqui e agora também nos afasta das ansiedades do futuro e do passado que ficou para trás. Não por acaso, a forma mais básica de meditação para nos trazer paz e tranquilidade requer simplesmente o foco na respiração, a cada inalação e expiração, deixando que passe alheio e não nos apeguemos a qualquer distração que nos tire a atenção ao momento presente.


2. Humildade
Quando fiz o caminho pela primeira vez, achava que tiraria de letra, por causa da minha capacidade física, de tudo que havia lido e toda parafernália que levava. Em resumo, me sentia o cara mais bem preparado.

A histórica do grande transatlântico Titanic diz que ao batizarem o navio ouviu-se, “Nem Deus Afunda”. Era como eu me sentia. Mesmo tendo algumas incertezas sobre como seria caminhar tantos dias, tantos quilômetros, com mochila nas costas, estava seguro de que se havia alguém que seria capaz de superar tantos obstáculos, este alguém seria eu. Sou meio obstinado principalmente quanto a achar que fisicamente não tenho limites. Assim como o Titanic, me achava invulnerável.

Não importa os motivos. Importa sim saber que, por mais confiantes que sejamos, ainda assim somos muito vulneráveis a fatores completamente imprevistos. Por isso, é importante ter a humildade de sempre ter em mente que a fronteira que separa a “autoconfiança” da “arrogância” é muito estreita.

Uma caminhada tão extensa pode tomar um rumo inesperado, como uma pequena bolha que por ser mal cuidada pode levar a inflamação de boa parte do pé e consequentemente impedir o peregrino de seguir adiante. Outro exemplo, torcer o joelho, ou o tornozelo, pode acontecer, num momento de distração, para qualquer pessoa.

Depois do naufrágio da minha primeira experiência no caminho, mudei meu comportamento.

Nas seguintes viagens, principalmente nos dias em que caminhava mais de 35 quilômetros e me sentia forte, saudável e inabalável, não deixava de agradecer comigo mesmo a ótima resposta do meu corpo, ciente de que talvez no dia seguinte não poderia fazer o mesmo, que teria que ´escutar´ os sinais internos e talvez compensar fazendo um percurso mais curto.


3. Cada um tem seu ritmo
Quando alguém que conhecemos na rota caminha mais rápido ou uma distância mais longa, por mais que você queira continuar ao seu lado, você tem que ter em mente se está dentro de suas capacidades.

É muito comum conhecermos pessoas caminhando ao nosso lado, ou num albergue, com quem gostaríamos de seguir juntos. Da mesma forma que as encontramos, temos que deixá-las seguir adiante ou para trás se estas não caminharem no seu ritmo ou queiram terminar o dia numa cidade mais para frente ou anterior ao seu plano para tal dia.

O mesmo vale para não nos compararmos com outras pessoas no nosso entorno da “vida real”. Conhecer nossos limites é fundamental para chegar onde queremos, no ritmo e tempo que alocamos.


4. Planejar com flexibilidade
Ler, adquirir os equipamentos e preparar-se fisicamente fazem parte do planejamento para que a viagem corra mais prazerosamente.

Entretanto, principalmente numa viagem como o Caminho de Santiago, nem tudo pode ser previsto. Temos que estar abertos a eventualidades: cansaço inesperado, dor nos ombros, bolhas, albergues lotados, frio ou calor excessivo, ducha só com água fria, banheiro sujo, comida ruim, sede... a lista é interminável.

Dificilmente não acontecerá de você ter que andar cinco quilômetros a mais do que planejara, ou porque o único albergue do pueblo está lotado, ou porque precisa da internet e neste local não exista conexão. Outro exemplo: ser obrigado a parar antes da cidade que pretendia ir, simplesmente porque o cansaço é demais.

Planejar sim, mas com flexibilidade. É desnecessário dizer que o mesmo vale para a vida.


5. Mochila
Quanto material precisamos para viver? No caminho, nos damos conta de que tudo que precisamos carregamos em nossa mochila: a roupa para vestir ao final do dia, a comida (caso não vá comer num restaurante) e outros essenciais.

Descobrimos como podemos nos desapegar a tantos confortos e supérfluos e ser feliz, ou mesmo, mais feliz, sem o peso de tantos objetos não essenciais.

Curiosamente, ao voltarmos para casa depois de trinta dias, ou mais ou menos, não raro, pode acontecer de inicialmente mantermos as mesmas rotinas com relação a comida: passar num mercado, padaria e fruteiro, para abastecer-se para as próximas 24 horas.


6. Prevenir antes de curar
Como evitar bolhas? É difícil, mas para minimizar as chances de que apareçam devemos usar botas e meias bem testadas antes da viagem.

Tendinites são comuns. Como evitá-las? A melhor forma é preparar-se fisicamente ao máximo. Assim mesmo, é bem possível passar por uma ocorrência desta. Aí só nos resta diminuir o ritmo ou mesmo descansar um, dois ou alguns dias mais.

Certamente, os ombros sentirão o peso da mochila, por mais adequada que seja esta. De qualquer forma, carregar uma mochila moderna, adequada ao seu corpo, faz muita diferença. Os mais românticos podem argumentar que os antigos peregrinos não precisavam de tanta parafernália. Ok, mas hoje você vê turistas viajando os EUA de costa a costa em carruagens? Cruzando os oceanos em  caravelas? Na competição de ciclismo como o Tour de France, você vê alguém com uma simples bicicleta tipo Caloi 10? O mundo evolui para nos trazer mais conforto e não há nada de mal em aceitá-lo e fazermos bom uso.

Para concluir, aqui vão alguns ditado do Caminho:
• “O peregrino caminha quando pode e não quando quer”;
• “O peregrino não faz o Caminho. O Caminho está feito. No Caminho, o peregrino se faz”;
• “Com pão e vinho se faz o Caminho”.

*Autor: Eduardo Assumpção de Queiroz
Formado em Business Administration pelo Limestone College, Carolina do Sul, EUA, e Master em Gestão de Alojamentos Turísticos pela Universidade de Girona, Espanha, é um profundo conhecedor do Caminho de Santiago, tendo percorrido diversas vezes a popular rota Francesa, além da rota do Norte, ao longo do litoral que cruza o País Vasco, Cantábria e Astúrias, a rota Portuguesa e também a extensão entre Santiago e Finisterra. Eduardo vive na Espanha incentivando e organizando grupos de viagem ao Caminho de Santiago através do site www.peregrinovip


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