8 de maio de 2019

Diário da Minha Jornada no Caminho de Compostela


Escrevi  um livro   com o  diário da  minha  jornada no  Caminho de  Santiago. O   trecho a  seguir  é o capitulo  inicial da  obra, que  ainda  não  foi  editada. Vou publicar  aqui  no blog   algumas  partes  do  livro,  o primeiro capitulo e  outros  dois  que  escolherei para  outras  duas postagens. 



* * *

Primeiro dia  


Fazer o caminho de Santiago não estava nos meus planos, até saber através de um espanhol que conheci na viagem a Macchu Picchu, que o caminho de Compostela poderia ser feito de acordo com as escolhas do peregrino. Até aquele dia eu imaginava que o caminho de Santiago somente poderia ser realizado numa rota determinada oficialmente, sem que o caminhante pudesse escolher o início do percurso. Quando soube que fazer o caminho de forma personalizada, podendo ser iniciado no local escolhido e pelo tempo necessário, fiquei interessada, pois não teria tempo nem disposição para percorrer toda rota do caminho francês, aproximadamente 800 quilômetros. Para isso teria que me preparar mais e por um período maior. Caminhar 150 a 200 km, em dez dias, já seria muito bom para mim.
Ao retornar da viagem ao Peru comecei a planejar a realização do caminho de Santiago. No início pensei em ir sozinha. Como não gosto de viajar sem companhia, o universo conspirou a favor e encontrei um grupo que faria a caminhada na mesma época que eu escolhera, na primavera. Então passamos aos preparativos, com a aquisição do equipamento e roupas adequadas, bem como a preparação física e mental. Treinamos em trilhas rurais, também em pistas urbanas e adquirimos o necessário para nossa jornada.
Passei seis meses em intensa pesquisa sobre o assunto e compartilhei o aprendizado adquirido nessas pesquisas em um blog na internet (http://nocaminhodecompostela.blogspot.com.br). Por fim chegou o dia tão esperado, quando saí de Madri rumo a Ponferrada, onde seria iniciado o caminho, em companhia de duas amigas que seriam minhas principais companheiras de caminhada. Planejamos percorrer um quarto do Caminho Francês, em torno de 200 km . Outros três integrantes do grupo viajaram antes, pois fariam toda rota do caminho francês, inciando por San Jean Pied Port, na França.
Fizemos a viagem de Madri a Ponferrada de ônibus e nesse trajeto já vislumbrei a beleza do caminho, pois a paisagem que descortinava na janela era de tirar o fôlego. Flores enfeitavam todo percurso e o jardim de Deus era um regalo para os olhos. Com tanta beleza, as horas de viagem  passaram-se  com rapidez, de sorte que cheguei em Ponferrada sem nenhum vestígio de cansaço, apesar de ter acordado ainda na madrugada, para pegar o ônibus na estação rodoviária em Madri.


Chegando em Ponferrada e acomodada no hotel, fui até um dos albergues dessa cidade onde estavam hospedados os demais do grupo que iniciaram a caminhada em San Jean Pied Port. Nosso grupo passou a ser formado por nove pessoas: eu e as duas amigas que viajamos por último, mais outras seis pessoas, entre as quais duas taiwanesas que se juntaram ao grupo que já havia iniciado o caminho.
Logo que cheguei em Ponferrada já pressenti uma pequena dificuldade de interação, pois alguém impaciente demonstrou que seria pouco tolerante com eventual necessidade de espera por algum motivo, sugerindo que eu poderia seguir no caminho sozinha, caso não acompanhasse a pressa do grupo. Eu, diferente dos demais, estava com duas bagagens para administrar no serviço de transporte e às vezes isso levava algum tempo. Esta foi a primeira provação que tive durante a jornada e a primeira lição do caminho: ter paciência e ser tolerante com eventual falta de paciência ou intolerância. Parece um paradoxo, mas é assim mesmo. Mostrar a outra face é a melhor atitude .
Somos nós os únicos responsáveis por nossas expectativas em relação aos demais. Ninguém pode ser responsabilizado por nossas expectativas não satisfeitas, a não ser nós mesmos. Mas há um limite tanto para a paciência, como para a tolerância. Eu sabia que chegando no meu limite quanto aos demais e no limite dos demais em relação a mim, seria o caso de seguir sozinha e para isso teria de estar em condições de autonomia.
Às vezes ficamos presos a um padrão de comportamento, sem condições de autonomia e liberdade de escolha. Sentir que estamos libertos dos nossos medos, das nossas limitações, nos capacita para seguirmos sozinhos, com autonomia e liberdade. Assim podemos desenvolver a habilidade de construir relações saudáveis, com pessoas que estejam alinhadas com o propósito de nossas almas. E nada melhor do que o convívio com aqueles que estejam na mesma sintonia, com os mesmos propósitos e ideais. Mas a convivência na diversidade é um aprendizado para lidar com a adversidade e desenvolver a resiliência. E para isso o exercício da tolerância e da paciência é necessário.
Ponferrada é uma cidade muito agradável, cuja atração turística principal é o Castelo dos Templários, um desses lugares que parecem mágicos, saídos de contos de fadas ou filmes. Foi assim que senti, quando ali cheguei, como se estivesse em um cenário .



O castelo originariamente era uma fortaleza e foi construído no século XV por Dom Pedro Álbarez de Osório, Conde de Lemos. Ao redor dele apareceu uma cidadela que se chamava Ordem do Templo, hoje denominada Ponferrada. Dentro do castelo há uma biblioteca com uma exposição chamada “Templu Libri” ( templo do livro), com alguns dos mais belos exemplares sobre os templários, que até pouco tempo estavam ocultos, pois pertenciam a coleções de monastérios, universidades e museus. É considerada a maior biblioteca do mundo sobre esse tema.
A Ordem dos Templários foi uma ordem militar de Cavalaria, que teve existência por cerca de dois séculos, na Idade Média. Foi criada com o propósito original de proteger os cristãos que voltaram a fazer a peregrinação a Jerusalém, após sua conquista. O sucesso dos Templários esteve vinculado ao das Cruzadas. Quando a Terra Santa foi invadida, o apoio à Ordem reduziu-se. Rumores acerca da cerimônia de iniciação secreta dos Templários criaram desconfianças e o rei Filipe IV da França - também conhecido como Felipe, O Belo - profundamente insatisfeito com a Ordem dos Templários, começou a pressionar o papa Clemente V a tomar medidas contra ela. Em 1307, muitos dos membros da Ordem na França foram detidos e queimados publicamente, acusados de bruxaria e idolatria. Em 1312, o papa Clemente dissolveu a Ordem. O súbito desaparecimento da maior parte da infraestrutura europeia da Ordem deu origem a especulações e lendas, que mantêm o nome dos templários vivo até os dias atuais.


 O cavaleiro templário era muito destemido e seguro. Sua alma era protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo era protegido pela armadura de aço. Portanto, era duplamente protegido e não temia nada do mundo material, tampouco do mundo invisível. Levando uma forma de vida austera, os templários não tinham medo de morrer na defesa dos cristãos que iam em peregrinação à Terra Santa.
Com o passar do tempo esta Ordem ficou riquíssima e muito poderosa pois os Templários receberam várias doações de terras na Europa, ganharam enorme poder político, militar e econômico, o que acabou permitindo estabelecer uma rede de grande influência no continente.

A destruição da Ordem do Templo propiciou ao rei francês não apenas as propriedades dessa Ordem, como a eliminação do exército da Igreja, o que o tornava senhor rei absoluto na França. Nos demais países, a riqueza da Ordem ficou com a Igreja Católica. Os Templários tornaram-se, assim, associados a lendas sobre segredos e mistérios, e mais rumores foram adicionados nos romances de ficção, como Ivanhoé, O Pêndulo de Foucault e O Código Da Vinci. No cinema tem "A Lenda do Tesouro Perdido" e "Indiana Jones e a Última Cruzada". Dizem que há ligações entres os Templários e uma das mais conhecidas sociedades secretas, a Maçonaria .

Muitas das lendas dos Templários estão relacionadas com a ocupação do monte do Templo em Jerusalém e da especulação sobre as relíquias que esta Ordem pode ter encontrado lá, como o Santo Graal ou a Arca da Aliança. O tema das relíquias também surgiu durante a Inquisição dos Templários que foram acusados de idolatria e bruxaria.

Além de possuir riquezas e uma enorme quantidade de terras na Europa, a Ordem dos Templários tinha uma grande esquadra. Os cavaleiros, além de temidos guerreiros em terra, eram também exímios navegadores e utilizavam sua frota para deslocamentos e negócios com várias nações. Devido ao grande número de membros da Ordem, apenas alguns dos cavaleiros foram aprisionados (a maioria franceses). Os cavaleiros de outras nacionalidades não foram aprisionados e isso possibilitou que se refugiassem em outros países. Segundo alguns historiadores, alguns cavaleiros foram para Escócia, Suíça, Portugal e até para lugares mais distantes, usando seus navios. Muitos deles mudaram seus nomes e se instalaram em países diferentes, para evitar uma perseguição do rei e da Igreja.

Um dado interessante relativo aos cavaleiros que teriam fugido para a Suíça, é que antes dessa época não há registros da existência do famoso sistema bancário daquele país, até hoje utilizado e também discutido. No auge da formação da Ordem, os cavaleiros templários desenvolveram um sistema de empréstimos, linhas de crédito, depósitos de riquezas que na sua época já se assemelhava bastante aos bancos de hoje. É possível que tenham sido os cavaleiros que se refugiaram na Suíça que implantaram o sistema bancário no lugar e que até hoje é a principal atividade do país.

Chegando no castelo com uma das peregrinas do grupo, encontramos um casal de jovens brasileiros que faziam o caminho de bicicleta. A menina nos cumprimentou alegremente e falou que já havia chorado muito no caminho . Não entendi o motivo de tanto choro. Ela estava com o rosto bem queimado do sol e parecia feliz, apesar do aparente cansaço. Depois descobri que o caminho é assim mesmo. Ficamos ao mesmo tempo alegres e tristes, cansados e energizados . Não sei dizer como isso é possível, mas é real.
Ao passear pelo castelo dos templários tive uma leve sensação de déja vú. Seria só impressão, ou eu já conhecia aquele lugar? O sentimento de familiaridade era uma constante. Ao visitar o museu e a biblioteca do castelo, tudo me era familiar, desde a roupa usada pelos templários, como a fisionomia das pessoas retratadas nos quadros e esculturas ali existentes. Parecia que em algum tempo distante eu fizera parte daquele cenário. Ou seria somente uma impressão?
Depois do passeio ao Castelo retornamos ao hotel. No dia seguinte, bem cedo, iniciei a caminhada com os demais do grupo. Com uma mochila pesando 7,6 kg, o cajado metálico prata com detalhes na cor azul e vestida também com roupa predominantemente azul, saí a andar pelo caminho de flores. Já na saída percebi que não estava com o boné e deduzi que ele havia caído em algum lugar. Fiquei um pouco apreensiva, pois este era um acessório muito importante, uma vez que o dia prometia ser bastante ensolarado. Então um dos amigos de caminhada me ajudou a encontrá-lo, retornando comigo até o lugar onde o boné estava caído no chão. No caminho é assim. Sempre há um amigo por perto para nos auxiliar nos momentos que precisamos de ajuda.
Verifiquei que tinha esquecido algo muito importante no hotel, a garrafa de água. Ainda era cedo e não havia naquele horário nenhuma lanchonete ou cafeteria abertas. Caminhei em torno de um quilômetro meio sedenta, até encontrar uma lanchonete. Comprei duas garrafas pequenas e verifiquei que por coincidência elas eram azuis, combinando com minha roupa e o cajado. Coloquei as duas garrafinhas azuis nos bolsos laterais da mochila e segui acompanhando o grupo.
No momento da saída em Ponferrada, quando iniciei a caminhada, segui em frente na pista da avenida e não observei a seta que indicava o caminho direcionada para um pequeno atalho na lateral da pista. Então uma das pessoas do grupo me chamou e retornei na direção certa. Estar atenta aos sinais do caminho é uma das primeiras lições que aprendemos. Qualquer desatenção pode nos levar a seguir na direção errada .


No início da caminhada fiquei tocada pela emoção e por um momento entendi o motivo pelo qual a menina que fazia o caminho de bike falou que já havia chorado muito. Ela, como eu, chorava de emoção. É tanta beleza no caminho, que não cabe nos nossos olhos e por isso choramos. Muitas flores, rosas enormes, lindas! Flores do campo, lírios, margaridas. Aquele era o caminho que eu sempre imaginei percorrer, um caminho de flores. Estava vestida de azul. Meu stick também tinha detalhe na cor azul. E as garrafinhas de água eram azuis. Então iniciei a caminhada cantando a música do Lulu Santos:
" Tudo azul, todo mundo blue. No Brasil, sol de norte a sul. Tudo bem, tudo zen, meu bem. Tudo sem força e direção. Nós somos muitos, não somos fracos, somos sozinhos nessa multidão, nós somos só um coração, ligados pelo sonho de viver ...“ 
Eu me sentia assim, como os versos da canção: forte , meio ”blue” e zen . Às vezes sem força, pois o peso da mochila me deixava muito cansada. Às vezes sem direção, pois me distraía das setinhas que indicavam o caminho. E às vezes me sentia só, apesar de caminhar na companhia de outras pessoas. Mas não era solidão, era a sensação de que o caminho, mesmo sendo feito na companhia de outros, era por mim percorrido através dos meus próprios passos. Portanto eu estava só, apesar da companhia. Ao mesmo tempo eu me sentia ligada a tudo e a todos que ali estavam. Viver aquela experiência nos ligava por um fio invisível. Era o dom de viver a vida com liberdade, de viver nosso sonho, que para algumas pessoas poderia parecer maluquice.



Nesse trajeto fui contaminada por uma virose. Lembro que nesse percurso a água que eu trazia nas duas garrafinhas acabou. Então alguém do grupo generosamente me deu um pouco da água do seu cantil . Chegando em um lugarejo enchi minha garrafa em uma bica de água potável que havia ali. Na Europa existe o hábito de beber água da torneira. Eu não tenho esse hábito, portanto em todo lugar eu comprava água mineral engarrafada. Mas nesse percurso minha garrafa secou e fiquei sedenta. Não havia nenhum local para comprar água, era um trecho meio desabitado. Assim tive de encher a garrafa com água da torneira. Não sei ao certo se fui contaminada com essa água, ou por outro motivo meu sistema imunológico não reagiu de forma adequada a alguma contaminação viral. O certo é que cheguei em Villafranca sentindo o corpo dolorido e com as vias aéreas congestionadas. Além disso, a caminhada de 29,6 km logo no primeiro dia, com a mochila pesada, sobrecarregou minha coluna o que me deixou sem condições de caminhar no dia seguinte. Então tive de pegar um táxi no percurso do segundo dia de caminhada  (12 km),  até Vega de Valcarce, pois não poderia ficar atrasada no caminho, uma vez que estava com um grupo e havia um tempo determinado para realizar o trajeto até Santiago.
Algo me deixou um pouco introspectiva nesse trajeto. Foi quando paramos para lanchar em um povoado. Após ser atendida no balcão e verificando que a cadeira da mesa onde deixei minha mochila fora ocupada por uma pessoa do grupo, me sentei em uma mesa onde se encontrava outra peregrina. Então esta pessoa me disse que aquele lugar estava anteriormente ocupado pelas duas taiwanesas que se agregaram ao grupo que veio de San Jean Pied Port, dando a entender que eu deveria me retirar. Eu ainda não havia me entrosado com as taiwanesas, pois acabara de conhecê-las naquele mesmo dia e geralmente os orientais são um pouco reservados com pessoas que ainda não fazem parte do seu círculo de amizade, assim como também sou. As duas asiáticas, muito educadas, delicadamente sentaram-se em outra mesa, uma vez que não havia lugar marcado ali. Então a mesma pessoa, verificando que eu não me retirava, meio incomodada retirou-se para a mesa onde estavam as taiwanesas. Confesso que me senti um pouco excluída, pois todas poderiam sentar-se  ali, havia lugares e cadeiras suficientes. Fiquei na mesa tomando o lanche sozinha e pensando comigo mesma : " Os incomodados que se retirem ". Eu não estava nem um pouco incomodada  com a  companhia, portanto permaneci na mesa.
Pouco depois passei a conhecer mais as duas taiwanesas e confesso que foram pessoas especiais, entre outras que conheci no caminho. Sei que meu caminho foi um aprendizado de tolerância, paciência e autoconhecimento. Foi um caminho de mais introspecção do que extroversão. Aprendi muito com todas as pessoas que fizeram parte dele e sou grata a elas, inclusive às duas adoráveis peregrinas taiwanesas, bem como à pessoa que indelicadamente me deixou lanchando sozinha, retirando-se para outra mesa, mas em outras ocasiões foi atenciosa comigo e com todos  do grupo.




---------------------------------------------------------------------------------------------------------



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita! Deixe um comentário que responderei com muito prazer .