Escrevi um livro com o diário da minha jornada no Caminho de Santiago. O trecho a seguir é o capítulo inicial da obra, que ainda não foi editada. Vou publicar aqui no blog algumas partes do livro, o primeiro capítulo e outros dois que escolherei para outras duas postagens.
* * *
Primeiro dia
Fazer o caminho de
Santiago não estava nos meus planos, até saber através de
um espanhol que conheci na viagem a Macchu Picchu, que o
caminho de Compostela poderia ser feito de acordo com as
escolhas do peregrino. Até aquele dia eu imaginava que o caminho
de Santiago somente poderia ser realizado numa rota determinada
oficialmente, sem que o caminhante pudesse escolher o início
do percurso. Quando soube que fazer o caminho de forma
personalizada, podendo ser iniciado no local escolhido e pelo
tempo necessário, fiquei interessada, pois não teria tempo
nem disposição para percorrer toda rota do caminho francês,
aproximadamente 800 quilômetros. Para isso teria que me
preparar mais e por um período maior. Caminhar 150 a 200 km, em dez dias, já seria muito bom para mim.
Ao retornar da
viagem ao Peru comecei a planejar a realização do caminho
de Santiago. No início pensei em ir sozinha. Como não gosto
de viajar sem companhia, o universo conspirou a favor e
encontrei um grupo que faria a caminhada na mesma época que
eu escolhera, na primavera. Então passamos aos preparativos,
com a aquisição do equipamento e roupas adequadas, bem como
a preparação física e mental. Treinamos em trilhas rurais, também em pistas urbanas e adquirimos o necessário para
nossa jornada.
Passei seis meses em
intensa pesquisa sobre o assunto e compartilhei o aprendizado
adquirido nessas pesquisas em um blog na internet
(http://nocaminhodecompostela.blogspot.com.br).
Por fim chegou o dia tão esperado, quando saí de Madri rumo
a Ponferrada, onde seria iniciado o caminho, em companhia de
duas amigas que seriam minhas principais companheiras de
caminhada. Planejamos percorrer um quarto do Caminho Francês, em
torno de 200 km. Outros
três integrantes do grupo
viajaram antes, pois fariam toda rota do caminho francês,
inciando por San Jean Pied Port, na França.
Fizemos a viagem de
Madri a Ponferrada de ônibus e nesse trajeto já vislumbrei a
beleza do caminho, pois a paisagem que descortinava na janela
era de tirar o fôlego. Flores enfeitavam todo percurso e o
jardim de Deus era um regalo para os olhos. Com tanta beleza,
as horas de viagem passaram-se com rapidez, de sorte que
cheguei em Ponferrada sem nenhum vestígio de cansaço, apesar de
ter acordado ainda na madrugada, para pegar o ônibus na
estação rodoviária em Madri.
Chegando em
Ponferrada e acomodada no hotel, fui até um dos albergues
dessa cidade onde estavam hospedados os demais do grupo que
iniciaram a caminhada em San Jean Pied Port. Nosso grupo passou a
ser formado por nove pessoas: eu e as duas amigas que
viajamos por último, mais outras seis pessoas, entre as quais
duas taiwanesas que se juntaram ao grupo que já havia
iniciado o caminho.
Logo que cheguei em
Ponferrada já pressenti uma pequena dificuldade de interação,
pois alguém impaciente demonstrou que seria pouco tolerante
com eventual necessidade de espera por algum motivo, sugerindo
que eu poderia seguir no caminho sozinha, caso não acompanhasse o ritmo do grupo. Eu, diferente dos demais, estava com duas
bagagens para administrar no serviço de transporte e às vezes
isso levava algum tempo. Esta foi a primeira provação que
tive durante a jornada e a primeira lição do caminho: ter
paciência e ser tolerante com eventual falta de paciência ou
intolerância. Parece um paradoxo, mas é assim mesmo. Mostrar
a outra face é a melhor atitude.
Somos nós os únicos
responsáveis por nossas expectativas em relação aos demais.
Ninguém pode ser responsabilizado por nossas expectativas não
satisfeitas, a não ser nós mesmos. Mas há um limite tanto
para a paciência, como para a tolerância. Eu sabia que chegando
no meu limite quanto aos demais e no limite dos demais em
relação a mim, seria o caso de seguir sozinha e para isso
teria de estar em condições de autonomia.
Às vezes ficamos
presos a um padrão de comportamento, sem condições de
autonomia e liberdade de escolha. Sentir que estamos libertos
dos nossos medos, das nossas limitações, nos capacita para
seguirmos sozinhos, com autonomia e liberdade. Assim podemos
desenvolver a habilidade de construir relações saudáveis, com
pessoas que estejam alinhadas com o propósito de nossas almas.
E nada melhor do que o convívio com aqueles que estejam na
mesma sintonia, com os mesmos propósitos e ideais. Mas a
convivência na diversidade é um aprendizado para lidar com a
adversidade e desenvolver a resiliência. E para isso o
exercício da tolerância e da paciência é necessário.
Ponferrada é uma
cidade muito agradável, cuja atração turística principal é
o Castelo dos Templários, um desses lugares que parecem
mágicos, saídos de contos de fadas ou filmes. Foi assim que
senti, quando ali cheguei, como se estivesse em um cenário.
O castelo
originariamente era uma fortaleza e foi construído no século XV
por Dom Pedro Álbarez de Osório, Conde de Lemos. Ao redor dele
apareceu uma cidadela que se chamava Ordem do Templo, hoje
denominada Ponferrada. Dentro do castelo há uma biblioteca
com uma exposição chamada “Templu Libri” ( templo do livro), com alguns dos mais belos exemplares sobre os templários, que
até pouco tempo estavam ocultos, pois pertenciam a coleções de
monastérios, universidades e museus. É considerada a maior
biblioteca do mundo sobre esse tema.
A Ordem dos Templários
foi uma ordem militar de Cavalaria, que teve existência por
cerca de dois séculos, na Idade Média. Foi criada com o
propósito original de proteger os cristãos que voltaram a
fazer a peregrinação a Jerusalém, após sua conquista. O
sucesso dos Templários esteve vinculado ao das Cruzadas. Quando a
Terra Santa foi invadida, o apoio à Ordem reduziu-se. Rumores
acerca da cerimônia de iniciação secreta dos Templários criaram
desconfianças e o rei Filipe IV da França - também conhecido como
Felipe, O Belo - profundamente insatisfeito com a Ordem dos
Templários, começou a pressionar o papa Clemente V a tomar medidas
contra ela. Em 1307, muitos dos membros da Ordem na França foram
detidos e queimados publicamente, acusados de bruxaria e idolatria. Em 1312, o papa Clemente dissolveu a Ordem. O súbito
desaparecimento da maior parte da infraestrutura europeia da Ordem
deu origem a especulações e lendas, que mantêm o nome dos
templários vivo até os dias atuais.
O cavaleiro
templário era muito destemido e seguro. Sua alma era protegida
pela armadura da fé, assim como seu corpo era protegido pela
armadura de aço. Portanto, era duplamente protegido e não temia
nada do mundo material, tampouco do mundo invisível. Levando uma forma de vida austera, os
templários não tinham medo de morrer na defesa dos cristãos que
iam em peregrinação à Terra Santa.
Com o passar do
tempo esta Ordem ficou riquíssima e muito poderosa pois os
Templários receberam várias doações de terras na Europa,
ganharam enorme poder político, militar e econômico, o que acabou
permitindo estabelecer uma rede de grande influência no continente.
A destruição da
Ordem do Templo propiciou ao rei francês não apenas as propriedades
dessa Ordem, como a eliminação do exército da Igreja, o que o
tornava senhor rei absoluto na França. Nos demais países, a riqueza
da Ordem ficou com a Igreja Católica. Os Templários
tornaram-se, assim, associados a lendas sobre segredos e mistérios,
e mais rumores foram adicionados nos romances de ficção, como
Ivanhoé, O Pêndulo de Foucault e O Código Da Vinci. No cinema
tem "A Lenda do Tesouro Perdido" e "Indiana Jones e
a Última Cruzada". Dizem que há ligações entres os
Templários e uma das mais conhecidas sociedades secretas, a
Maçonaria .
Muitas das lendas
dos Templários estão relacionadas com a ocupação do monte do
Templo em Jerusalém e da especulação sobre as relíquias que esta
Ordem pode ter encontrado lá, como o Santo Graal ou a Arca da
Aliança. O tema das relíquias também surgiu durante a Inquisição
dos Templários que foram acusados de idolatria e bruxaria.
Além de
possuir riquezas e uma enorme quantidade de terras na Europa, a
Ordem dos Templários tinha uma grande esquadra. Os cavaleiros, além
de temidos guerreiros em terra, eram também exímios navegadores e
utilizavam sua frota para deslocamentos e negócios com várias
nações. Devido ao grande número de membros da Ordem, apenas
alguns dos cavaleiros foram aprisionados (a maioria franceses). Os
cavaleiros de outras nacionalidades não foram aprisionados e isso
possibilitou que se refugiassem em outros países. Segundo alguns
historiadores, alguns cavaleiros foram para Escócia, Suíça,
Portugal e até para lugares mais distantes, usando seus navios.
Muitos deles mudaram seus nomes e se instalaram em países
diferentes, para evitar uma perseguição do rei e da Igreja.
Um dado
interessante relativo aos cavaleiros que teriam fugido para a
Suíça, é que antes dessa época não há registros da existência
do famoso sistema bancário daquele país, até hoje utilizado e
também discutido. No auge da formação da Ordem, os cavaleiros
templários desenvolveram um sistema de empréstimos, linhas de
crédito, depósitos de riquezas que na sua época já se assemelhava
bastante aos bancos de hoje. É possível que tenham sido os
cavaleiros que se refugiaram na Suíça que implantaram o sistema
bancário no lugar e que até hoje é a principal atividade do país.
Chegando no castelo
com uma das peregrinas do grupo, encontramos um casal de jovens
brasileiros que faziam o caminho de bicicleta. A menina nos
cumprimentou alegremente e falou que já havia chorado muito no
caminho . Não entendi o motivo de tanto choro. Ela estava com o
rosto bem queimado do sol e parecia feliz, apesar do aparente
cansaço. Depois descobri que o caminho é assim mesmo.
Ficamos ao mesmo tempo alegres e tristes, cansados e
energizados . Não sei dizer como isso é possível, mas é
real.
Ao passear pelo castelo
dos templários tive uma leve sensação de déja
vú. Seria só impressão, ou eu já
conhecia aquele lugar? O sentimento de familiaridade era uma
constante. Ao visitar o museu e a biblioteca do castelo, tudo
me era familiar, desde a roupa usada pelos templários,
como a fisionomia das pessoas retratadas nos quadros e
esculturas ali existentes. Parecia que em algum tempo distante
eu fizera parte daquele cenário. Ou seria somente uma
impressão?
Depois do passeio ao
Castelo retornamos ao hotel. No dia seguinte, bem cedo, iniciei
a caminhada com os demais do grupo. Com uma mochila pesando
7,6 kg, o cajado metálico prata com detalhes na cor
azul e vestida também com roupa predominantemente azul, saí
a andar pelo caminho de flores. Já na saída percebi que
não estava com o boné e deduzi que ele havia caído em algum
lugar. Fiquei um pouco apreensiva, pois este era um acessório
muito importante, uma vez que o dia prometia ser bastante
ensolarado. Então um dos amigos de caminhada me ajudou a
encontrá-lo, retornando comigo até o lugar onde o boné
estava caído no chão. No caminho é assim. Sempre há um
amigo por perto para nos auxiliar nos momentos que precisamos
de ajuda.
Verifiquei que tinha
esquecido algo muito importante no hotel, a garrafa de água.
Ainda era cedo e não havia naquele horário nenhuma lanchonete
ou cafeteria abertas. Caminhei em torno de um quilômetro meio sedenta, até encontrar uma lanchonete. Comprei duas
garrafas pequenas e verifiquei que por coincidência elas eram
azuis, combinando com minha roupa e o cajado. Coloquei as
duas garrafinhas azuis nos bolsos laterais da mochila e segui
acompanhando o grupo.
No momento da saída
em Ponferrada, quando iniciei a caminhada, segui em frente na
pista da avenida e não observei a seta que indicava o
caminho direcionada para um pequeno atalho na lateral da
pista. Então uma das pessoas do grupo me chamou e retornei
na direção certa. Estar atenta aos sinais do caminho é uma
das primeiras lições que aprendemos. Qualquer desatenção
pode nos levar a seguir na direção errada .
No início da
caminhada fiquei tocada pela emoção e por um momento entendi o
motivo pelo qual a menina que fazia o caminho de bike
falou que já havia chorado muito. Ela, como eu, chorava de
emoção. É tanta beleza no caminho, que não cabe nos nossos
olhos e por isso choramos. Muitas flores, rosas enormes,
lindas! Flores do campo, lírios, margaridas. Aquele era o
caminho que eu sempre imaginei percorrer, um caminho de
flores. Estava vestida de azul.
Meu stick também tinha detalhe na cor azul. E as garrafinhas de
água eram azuis. Então iniciei a caminhada cantando a música
do Lulu Santos:
" Tudo azul, todo mundo blue. No Brasil, sol de norte a sul. Tudo bem, tudo zen, meu bem.
Tudo sem força e direção. Nós somos muitos, não somos fracos,
somos sozinhos nessa multidão, nós somos só um coração, ligados
pelo sonho de viver ...“
Eu me sentia assim,
como os versos da canção: forte , meio ”blue”
e zen . Às vezes sem força, pois o peso da
mochila me deixava muito cansada. Às vezes sem direção, pois me
distraía das setinhas que indicavam o caminho. E às vezes me sentia
só, apesar de caminhar na companhia de outras pessoas. Mas não
era solidão, era a sensação de que o caminho, mesmo sendo feito na
companhia de outros, era por mim percorrido através dos meus
próprios passos. Portanto eu estava só, apesar da companhia. Ao
mesmo tempo eu me sentia ligada a tudo e a todos que ali
estavam. Viver aquela experiência nos ligava por um fio
invisível. Era o dom de viver a vida com liberdade, de viver
nosso sonho, que para algumas pessoas poderia parecer
maluquice.
Nesse trajeto fui
contaminada por uma virose. Lembro que nesse percurso a água que
eu trazia nas duas garrafinhas acabou. Então alguém do grupo
generosamente me deu um
pouco da água do seu cantil . Chegando em um lugarejo enchi
minha garrafa em uma bica de água potável que havia ali. Na Europa
existe o hábito de beber água da torneira. Eu não tenho esse
hábito, portanto em todo lugar eu comprava água mineral
engarrafada. Mas nesse percurso minha garrafa secou e fiquei sedenta.
Não havia nenhum local para comprar água, era um trecho meio
desabitado. Assim tive de encher a garrafa com água da torneira. Não
sei ao certo se fui contaminada com essa água, ou por outro motivo
meu sistema imunológico não reagiu de forma adequada a alguma
contaminação viral. O certo é que cheguei em Villafranca sentindo
o corpo dolorido e com as vias aéreas congestionadas. Além disso, a
caminhada de 29,6 km logo no primeiro dia, com a mochila pesada,
sobrecarregou minha coluna o que me deixou sem condições de
caminhar no dia seguinte. Então tive de pegar um táxi no percurso do segundo dia de caminhada (12 km), até Vega de Valcarce, pois não poderia ficar atrasada no caminho,
uma vez que estava com um grupo e havia um tempo determinado para
realizar o trajeto até Santiago.
Algo me deixou um pouco
introspectiva nesse trajeto. Foi quando paramos
para lanchar em um povoado. Após ser atendida no balcão
e verificando que a cadeira da mesa onde
deixei minha mochila fora ocupada por uma
pessoa do grupo, me sentei em uma
mesa onde se encontrava
outra peregrina. Então esta pessoa me disse
que aquele lugar
estava anteriormente ocupado
pelas duas taiwanesas que se agregaram
ao grupo que veio de San Jean Pied Port, dando a entender que eu
deveria me retirar. Eu ainda não havia me entrosado com as
taiwanesas, pois acabara de conhecê-las naquele mesmo dia e
geralmente os orientais são um pouco reservados com pessoas que
ainda não fazem parte do seu círculo de amizade, assim como
também sou. As duas asiáticas, muito educadas, delicadamente
sentaram-se em outra mesa, uma vez que não havia lugar marcado ali. Então a mesma pessoa, verificando que eu não me retirava, meio
incomodada retirou-se para a mesa onde estavam as taiwanesas.
Confesso que me senti um pouco excluída, pois todas
poderiam sentar-se ali, havia lugares e
cadeiras suficientes. Fiquei na mesa tomando o lanche sozinha e
pensando comigo mesma : "Os incomodados
que se retirem". Eu não estava nem um
pouco incomodada com a companhia, portanto permaneci na mesa.
Pouco depois passei
a conhecer mais as duas taiwanesas e confesso que foram
pessoas especiais, entre outras que conheci no caminho. Sei que
meu caminho foi um aprendizado de tolerância, paciência e
autoconhecimento. Foi um caminho de mais introspecção do
que extroversão. Aprendi muito com todas as pessoas que
fizeram parte dele e sou grata a elas, inclusive às duas
adoráveis peregrinas taiwanesas,
bem como à pessoa que indelicadamente me deixou lanchando
sozinha, retirando-se para outra mesa, mas em outras
ocasiões foi atenciosa comigo e com
todos do grupo.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita! Deixe um comentário que responderei com muito prazer .